27/09/09 - 08h23 - Atualizado em 27/09/09 - 09h09
'É quase proibido questionar a internet', diz Fred Zero Quatro
Líder do Mundo Livre S/A defende o download pago de músicas.
Leia entrevista com o músico e jornalista pernambucano.
Lígia Nogueira
Do G1, em São Paulo
O músico e jornalista Fred Zero Quatro, que fundou o Mundo Livre S/A em 1984 e ajudou a dar cara ao movimento mangue beat há 15 anos, está preparando um álbum de inéditas, mas fala que ele corre o risco de não sair por falta de recursos. Admirador do escritor norte-americano Andrew Keen, autor de "O culto ao amador" e crítico feroz da web 2.0, o artista questiona a "demonização da indústria", critica o YouTube e defende o download pago de músicas na rede. "Achar que a eliminação das gravadoras não vai afetar a cadeia produtiva é no mínimo simplório."
G1- Em que sentido a internet pode ser prejudicial?
Fred Zero Quatro - Tem duas coisas que não envolvem só a música, mas todas as cadeias produtivas que se conectam com a web 2.0. Por um lado tem uma coisa meio inconsequente de uma nova geração, quase que cultuando uma espécie de fundamentalismo tecnológico. O YouTube, por exemplo, é uma ferramenta tecnológica que gera zero de conteúdo próprio – não tem artista, músico ou produtor contratado, só engenheiro. A atração do YouTube é arte, cultura, informação. A receita deles vem disso – e não é pequena – e a produção é zero, é mera tecnologia. Nesse altar todas as cadeias produtivas não valem nada.
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No caso específico da música, por exemplo, eu não posso chegar numa feira livre e pegar quatro tomates e cinco pimentões e levar pra casa, porque eu vou ser acusado de ladrão – e olha que estou falando de coisas que brotam da terra. Primeiro porque estamos numa sociedade capitalista, e segundo porque ali houve trabalho, investimento. É muito doido saber que há uma consciência de sustentabilidade quando se trata da natureza, dos rios, das florestas, e que essa mesma geração não aplica esse conceito quando se trata de música, cinema, jornalismo, formação de debate. Acha que o pensamento, que a produção cultural tem de ser necessariamente compartilhada. O conceito de sustentabilidade devia ser preservado também quando se trata das cadeias econômicas, produtivas, profissionais da cultura.
G1 - Você não é a favor do download?
Fred Zero Quatro - Acho que o compartilhamento gratuito e mesmo de conteúdos protegidos é uma ferramenta bacana, mas que favorece o grande público, que por sinal era muito explorado pela indústria em termos de preços, e favorece determinados tipos de artistas: aqueles que estão muito no início da carreira, e aqueles absolutamente medíocres, que não têm a menor chance de ser descobertos por gravadora, produtor, etc. Para eles, o fim da indústria é muito festejado porque representa o nivelamente por baixo, favorece a mediocridade.
G1 - Existe alternativa?
Fred Zero Quatro - Posso até parecer pedante, mas antes isso do que a demagogia rasteira que está assolando o falso debate sobre o assunto. Ao contrário do que estão chamando de “movimento para baixar”, eu preferia apostar numa alternativa como o “movimento para pagar e baixar” ou “música para pagar e baixar”, ou ainda “música demo para baixar”, como acontece com os demos dos games que as empresas disponibilizam. Para ter acesso à versão profissional, tem de pagar.
G1 - Como você vê a iniciativa do Radiohead?
Fred Zero Quatro - No caso do Radiohead, eles criaram uma coisa bacana, primeiro porque levantou essa discussão sobre o download, e depois porque eles se recusaram a cair nessa balela demagógica que tudo tem de ser disponibilizado. Quem quer baixar de graça, baixa, quem quer pagar pouco, paga, quem quer pagar muito, paga. Mas eles levantaram essa polêmica no momento em que se recusaram a disponibilizar tudo de graça.
G1 - Alguns artistas, como o Lúcio Maia, da Nação Zumbi, dizem não se importar com o download ilegal de música, já que seus fãs pagam para ir aos shows. O que você pensa sobre isso?
Fred Zero Quatro - Como disse o Umberto Eco, tudo o que eu vou falar pode não valer nada daqui a três meses. Jamais vou ter a pretensão de me levar muito a sério, mas não acredito que a desconstrução da indústria não tenha nenhum efeito nocivo no circuito de shows, porque é uma cadeia produtiva. De imeditado, você pode até dizer que continua com a agenda de shows. A médio e longo prazo, você tem uma cadeia produtiva que envolve estúdios, casas de shows, patrocinadores, músicos, produtores, etc, e uma coisa alimenta a outra. Achar que a eliminação do elo mais forte de todos, que mais injetava recursos - as gravadoras - não vai afetar os outros, é pelo menos simplório.
E tem ainda o efeito simbólico do valor da expressão musical. À medida que você começa a criar uma geração que já cresce com esse hábito de todo mês baixar não sei quantas mil músicas, a mensagem que vai pro cérebro é de que a música é uma porcaria qualquer.
G1 - Andrew Keen, autor do livro “O culto ao amador”, é um dos críticos mais ferozes da chamada web 2.0. Você compartilha das opiniões dele?
Fred Zero Quatro - Embora discorde de alguns pontos, o livro é bem fundamentado. Ele passou anos e anos pesquisando estatísticas que não são muito divulgadas. O conceito que ele levanta do culto do amador eu assino embaixo. A internet como ferramenta para facilitar o cotidiano das pessoas é tão poderosa no sentido de eliminar a burocracia, facilitar a comunicação, é algo que trouxe tanta novidade bacana, que levantar uma tese como essa é quase que uma verdade inconveniente. Você ter de alertar as pessoas de que não é bem assim, que existem alguns efeitos colaterais. É quase proibido questionar a internet.
G1 - Como fica o Mundo Livre S/A nesse contexto?
Fred Zero Quatro - A coisa mais sensata a fazer seria gravar um disco eletrônico. Comprar um software, montar um estúdio caseiro, porque não tem custo pra gravar. A gente está vivendo um paradoxo muito louco. Muitos estúdios, que viviam ocupados com grandes artistas, agora ou vão ter de ocupar tudo com a publicidade, se é que existe esse mercado, ou partir para outras experiências para se manter em funcionamento. Estamos gravando no estúdio do Dudu Marote, em São Paulo, temos três faixas prontas de um EP, e agora vamos ver como viabilizar isso. Temos material já composto para um álbum inteiro, e eu não tenho a menor ideia de como ele vai sair. As pessoas perderam o hábito de comprar disco. Ou sai por alguma lei de incentivo, algum edital, ou não sai. Há o interesse de um selo argentino, um português e um americano, mas eles licenciam o trabalho se já estiver pronto. A gente tem de arrumar uma forma de bancar.
G1 - Você assinaria com uma grande gravadora se recebesse um convite?
Fred Zero Quatro - Dependendo das condições, eu não tenho nada contra. As pessoas têm mania de demonizar a indústria, mas se esquecem de que tanto o “Samba esquema noise” quanto o “Da lama ao caos” só conseguiram transformar totalmente o ambiente cultural do Recife por causa do interesse de uma grande gravadora. Fora ter proporcionado clipes bacanas que foram sucesso na MTV e que deram origem a centenas de trabalhos novos.
Aquela provocação de que se fosse hoje o mangue beat não passaria de duas comunidades no Orkut é uma forma meio caricatural de tratar a questão, mas também de lembrar isso. Poucas coisas conseguem realmente atingir um nível profissional se não tiver um investimento legal por trás. Se a indústria some de vez, desde os medalhões, todo mundo que é referência vai ter de partir pra lei de incentivo. Será que o guarda-chuva vai abrigar desde Roberto Carlos até Mundo Livre, fora os novos que vão surgir? O pior cenário é o fim da indústria, por mais perversa que ela seja.
Fonte: http://g1.globo.com/Noticias/PopArte/0,,MUL1317603-7084,00-E+QUASE+PROIBIDO+QUESTIONAR+A+INTERNET+DIZ+FRED+ZERO+QUATRO.html